Maria Araújo Lima: Pacarrete

Maria Araújo Lima era: professora de educação física, recreadora, musicista de cavaquinho, violão, bandolim e acordeom. Essa majestosa artista clássica que teve o privilégio de alcançar a brilhante carreira de pianista e de bailarina, não era louca, era uma maestrina.




Cinema

O Cine Ceará exibirá o longa Pacarrete, primeiro longa-metragem do diretor cearense Allan Deberton. Filmado na cidade de Russas (CE), o filme, inspirado numa história real, teve sua estreia internacional no 22th Shanghai International Film Festival (SIFF), Golden Goblet Awards.

O filme conta a história da bailarina clássica (Marcélia Cartaxo), mais conhecida como Pacarrete, começa a enfrentar o drama da velhice. Desde menina, ela vivia pelo seu grande sonho de se tornar uma grande bailarina, mesmo que sendo nascida e criada em Russas, uma cidade muito conservadora do interior do Ceará, onde o normal seria se casar e cuidar dos filhos. Apesar das dificuldades, ela persiste em fazer o possível para alcançar sua meta, inclusive mudar de cidade. A trajetória da artista é revisitada desde a sua origem até os dias atuais, colocando em evidência inseguranças e questões pessoais que a acompanharam durante sua carreira e vida pessoal. 

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Agora, fique com esse artigo do Advogado e Escritor Airton Maranhão, Membro da Academia Russana de Cultura e Arte – ARCA sobre essa figura peculiar:

Existe pessoa estranha, extravagante e exibicionista de habilidades geniais que caminha nesta vida por trajetos enfeitados de sonhos e de flores, que às vezes é confundida e até repelida como louca do mundo real, por exibir na sequência monumental de sua arte, o ballet, percussora na própria terra natal com a voz de característica própria, de sutil nobreza de estilo, de inspiração e idealismo. Como aconteceu em Russas, com a nossa extraordinária professora de educação física, recreadora, musicista de cavaquinho, violão, bandolim e acordeom, Maria Araújo Lima. Essa majestosa artista clássica que teve o privilégio de alcançar a brilhante carreira de pianista e de bailarina, não era louca, era uma maestrina. Com a antonomásia de Pacarrete, nascida em Russas, no dia 25 de março de 1912, vivenciou uma elite clerical, reacionária e rudimentar onde a mulher era penitenciadora, servil e sem liberdade. Com visão interna de um caráter pobre, sem valor, sem direito a nada. Sem poder opor-se de suas idéias, era iluminada pelas trevas do pecado. Pelo pedantismo da arrogância dos pais ou do marido. Amargava um olhar triste sem enaltecer sensualidade, nem o desejo próprio de ser livre pela manifestação cultural e pessoal. A mulher daquela época vivia de intimidações penitentes sem conseguir um papel de destaque na vida, por ser mulher e frágil, submissa e subordinada ao homem. Tinha que manter os traços femininos sem poder assumir a chefia da família, para transitar numa sociedade agrária, ultrapassada e indistinta. Pacarrete, sábia, independente, retrógrada e arrivista na vida talentosa, aparentava disforme, rebelde e ridícula sem limite, com indumentária esfuziante, com seu pensamento sem egoísmo, sua inteligência sem cinismo e dogma de proibição, dissociava das sanções do apego material, do místico e do religioso, como quem estava a dois séculos além daquela época em que vivia. Por seus impulsos musicais divinos sempre desenvolveu a atividade cultural como arte requintada do ballet, como autêntica bailarina, vocacionada com realização, satisfação, sucesso e prestígio no que desfrutava como maestrina. Realmente, não poderia ser confundida como louca? O cognome Pacarrete originou-se da variação do vocábulo francês, “Pâquerete”, e Pâquerrette em português significa Margarida. Assim essa flor Pacarrete, como gostava de ser chamada, veio a surgiu através da personagem que interpretou quando criança numa peça escolar. Pacarrete desencantou-se em Russas, não era louca, nem farsante, nem diabólica. Se sorria à toa para vida, se dançava na praça, na calçada e na rua, sensual e enigmática, desabrochava a flor do sorriso característico das bailarinas, numa dança lírica e única a flutuar inspirada pela força da música, pelo símbolo da audácia e pela beleza da dramatização. Pacarrete nunca foi louca. Foi apenas uma mulher incrível, excêntrica e promissora que tentava mudar o espelho da mulher russana, macambúzia, escrava encarquilhada nas incrustações da infelicidade da própria aparência. Muito nova, foi para Fortaleza com suas duas irmãs. Depois estudou no internato da Escola Doméstica Maria Imaculada, na cidade de Pacoti. Na capital cearense, lecionou no Colégio Militar, na Escola Visconde do Rio Branco e no Colégio das Dorotéias. E como amiga de infância do Maestro Orlando Leite, não esqueceu a terra dos músicos. Aposentada, retornou a Russas, mas a sua estranheza maviosa fez transformá-la em várias condutas humanas, como ser confundida por louca com os trajes enfeitados de rosas transformacionais, devido a inevitável personalidade própria, forte e envolvente ao retratar os limites de capacidade extraordinária de natureza artística. Passou a fazer coisas excepcionais, diferente das normais. Tornou-se estranha e indomável no esplendor do seu próprio espetáculo. Dançou pelas ruas escaldantes da terra dos musicistas e nas noites de luar dos namorados, com toda leveza de bailarina clássica. Pacarrete não era doida! Embora que com toda delicadeza, equilíbrio e afeição de bailarina, quando irritada, impedia com gritos fortes de palavrões, a passagem de pessoas na sua calçada, para não sujar. A xingar aquela gente cega, ignorante e atrasada. Depois, sorridente, trancava a porta para tocar a Sonata ao Luar, de Beethoven. Pacarrete, paradisíaca, burlesca e encantadora num estado de exaltação, exalava sua flor e sorria como uma fada. Muitas vezes, implacável se lastimava por não contribuir ativamente com a cultura de Russas e de repente furiosa tocava a Marcha Fúnebre de Chopin. Mas não conseguia acordar o povo dormente para a beleza de sua arte. Pois, naquela época, era desprovido de significado, e rejeitava tudo que era moderno, estranho e sofisticado, por algum encanto ou sortilégio. Pacarrete não desanimava, o ballet residia nas sapatilhas de sua alma. E para desenvolvê-lo em Russas, se possível, dançaria sobre brasas acesas, sobre pontudos espinhos e tocaria seu piano à beira do abismo. Pacarrete proferia palavra de insulto às pessoas que julgavam a bailarina como coisa bizarra, sobrenatural e profana. Pacarrete era louca? As brancas colãs, da cor dos lírios, os vestidos  bordados com o marcante vermelho das rosas, as sombrinhas coloridas que giravam pelas ruas da cidade, o corpo esbelto, erguido na ponta da sapatilha, ainda plaina num ballet clássico em coreografia de total perfeição. Mas a visão daquela gente rude espreitava apenas o trotar mal-assombrado das éguas ruças, numa terra em declínio, sem modernidade e sem progresso. Pacarrete era louca? O cineasta russano Allan Deberton dirigiu um documentário sobre Pacarrete e contou a história da russana como se fosse uma suposta bailarina louca. O filme participou de festivais e mostras de cinema e foi indicado como o melhor documentário de mostra no Mato Grosso do Sul. Pacarrete morreu solitária, aos 92 anos, mas ainda ouvimos o tropel das éguas ruças como quem escuta o Hino à Alegria de Beethoven.