Tema da redação do Enem, livro sobre “brasileiros indocumentados” será lançado em Fortaleza

“Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento” é resultado da tese de doutorado da jornalista e professora universitária Fernanda da Escóssia. Obra terá lançamento presencial no dia 21 de dezembro, a partir das 19h




Cultura, Literatura

Maria da Conceição não conseguia operar um câncer em estado avançado nos hospitais por onde passava. Elizabeth queria, mas não podia visitar o filho preso havia mais de dois anos. Rita tinha vergonha de contar sua situação ao namorado. O que há em comum entre essas três histórias de brasileiros é a falta de um documento básico: a certidão de nascimento. No Brasil do século 21, essa realidade ainda atinge milhões de pessoas. Uma situação grave, mas aparentemente imperceptível, que motivou a jornalista e professora universitária Fernanda da Escóssia a pesquisar o tema abordado no livro Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento” (Editora FGV).

A obra será lançada em Fortaleza no dia 21 de dezembro, terça-feira, às 19h, na Escola Porto Iracema das Artes, instituição da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult) gerida pelo Instituto Dragão do Mar (IDM), com a presença da autora, que fará sessão de autógrafos. A apresentação será da jornalista Ana Quezado.

A diretora de Formação do Instituto Dragão do Mar e da Porto Iracema, professora Bete Jaguaribe, observa a importância dos estudos acadêmicos de Fernanda da Escóssia, agora reunidos em “Invisíveis”. “O olhar atento da prática do jornalismo juntou-se ao rigor acadêmico, gerando uma das reflexões mais oportunas no atual contexto do país”, afirma, acentuando o rigor da pesquisa da autora. “Fernanda da Escóssia tem um dos melhores textos jornalísticos do Brasil, além de um profundo compromisso com a luta por igualdade social. A percepção sensível das dores do povo deve orientar o olhar do bom jornalismo e é o que encontramos no livro, um relato comovente sobre o Brasil real”, destaca.

Pesquisa na redação do Enem 

Resultado da tese defendida por Fernanda da Escóssia no doutorado, o livro conta as trajetórias de adultos indocumentados que, pela falta do registro de nascimento, são impedidos de ter acesso a uma série de outros direitos. O assunto ganhou destaque recentemente, ao ser tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), mas o problema é antigo. Desde que Fernanda se deparou com a questão pela primeira vez, lá se vão cerca de 20 anos.

“Descobri esse assunto ainda como repórter, quando acompanhava o lançamento, pelo IBGE, dos dados sobre o registro civil. Os números mostravam que, no início dos anos 2000, 20% das crianças não eram registradas no ano em que nasciam ou nos primeiros três meses do ano seguinte. Eu tinha uma filha pequena e sabia da importância do documento, então passei a me perguntar como era possível que crianças não tivessem registro. Descobri que o problema não afetava só crianças, mas famílias”, conta a autora. A partir das diversas reportagens sobre o tema para os jornais Folha de S. Paulo e O Globo, em 2014, ela conheceu o ônibus da Justiça Itinerante, com atuação no Centro do Rio de Janeiro. Assim surgiu o interesse em transformar o problema social em problema sociológico, mostrando de que forma a exclusão documental se relaciona com direitos e cidadania.

Quem não tem registro de nascimento não pode tirar nenhum outro documento. Não vota, não tem emprego formal, conta em banco ou bens em seu nome. Apenas consegue atendimento médico de emergência e não pode ser incluído em políticas sociais. O acesso à educação é limitado, pois as escolas costumam exigir documentação para as matrículas. Dados da antiga Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) contabilizaram em 2015 cerca de 3 milhões de brasileiros de variadas idades sem documentos, mas não há estatísticas atualizadas sobre o tema.

“A exclusão documental reflete a desigualdade da sociedade brasileira”, afirma Fernanda da Escóssia. Segundo ela, mesmo nas margens, essas pessoas acabam construindo estratégias de sobrevivência até que surja uma situação que exija o documento. “Vão vivendo como conseguem, ilegíveis pelo Estado, invisíveis em seu próprio país e sem acesso pleno à cidadania”, ela diz.

De acordo com a autora, entre as diversas medidas que o Brasil pode adotar para solucionar o problema — algumas já existentes, como os comitês de combate ao sub-registro nos estados e municípios —, é preciso acabar com a “síndrome do balcão”, como ela chama a peregrinação dessas pessoas de um balcão do poder público a outro, durante anos. “O Estado precisa garantir a essas pessoas o atendimento digno e acesso aos documentos, que significa o acesso ao mundo dos direitos. Precisa não fechar os olhos para anos seguidos de exclusão”, enfatiza.

Entre o jornalismo e a etnografia

Jornalista reconhecida e pesquisadora experiente, em “Invisíveis”, Fernanda da Escóssia pôs em diálogo os métodos da apuração jornalística e da investigação acadêmica, por meio da etnografia. “O jornalismo me ajudou a treinar ferramentas de observação, escuta ativa e escrita disciplinada. A etnografia me levou a usar o tempo de outra forma e a mergulhar numa situação”, conta.

Durante dois anos, ela acompanhou a rotina de trabalho no ônibus da Justiça Itinerante na capital fluminense. Tempo que possibilitou um envolvimento com as pessoas que buscavam o serviço muito além do que o jornalismo permitiria. “No processo de escrita, decidi valorizar as histórias das pessoas, além da discussão conceitual sobre o significado de ser uma pessoa indocumentada e o lugar atribuído ao documento”, diz. “Devo dizer que foi difícil não contar aquelas histórias no tempo mais imediato do jornalismo… optei por uma investigação em profundidade, e hoje vejo que foi o correto”, conclui.

Sobre a autora

Fernanda da Escóssia é professora da Escola de Comunicação da UFRJ, onde leciona disciplinas como Jornalismo Político, Jornalismo e Direitos Humanos, Reportagem e Redação Jornalística. É doutora em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC/FGV e mestra em Comunicação pela UFRJ. Cursou jornalismo na Universidade Federal do Ceará. No jornalismo e na etnografia, o foco de seu trabalho envolve a desigualdade social brasileira e seus desdobramentos em várias áreas – educação, saúde e direitos humanos. Fernanda é editora na revista piauí, publicação impressa e digital com foco em jornalismo narrativo e investigações em profundidade. Foi editora de Política do Globo, repórter da Folha de S.Paulo e ombudsman da Agência Lupa.