Thiago ama waffles, mas prefere cuscuz: o cheiro da manhã do Crato sentida de Nova York

Há quase um ano na capital americana, Thyago e Bianca colocaram os passaportes na mala e voaram com o sonho de seguir a música. Juntos há 12 anos, o casal explica que muita coisa mudou desde que pisaram pela primeira vez nos Estados Unidos, mas o sentimento de pertença ainda o mesmo pelo Crato. O primeiro passo para arriscar foi procurar uma vista além da Chapada do Araripe




Cultura

Grand Central. Repito por quase sete vezes, em uma pronúncia mental de inglês aprendido no nivelamento do ensino médio, o nome da estação de metrô que eu iria descer em Manhattan, após cruzar a imigração do Aeroporto Internacional John F. Kennedy, Nova York. Fazia 10º e com uma mochila nas costas e um par de botas nos pés, ligo para Bianca, companheira de Thiago, antes mesmo de ligar para mãe, e aviso que o rapaz do Crato já estava a caminho. Ela pede para eu pegar um Uber, mas a rota pelo mapa impresso pareceu mais sedutora.

Sento no chão do aeroporto, abro o mapa, risco com uma caneta azul o trajeto e guardo o passaporte. Pego duas conduções, parto do terminal 4, linhas vermelha e verde, número sete. Abasteço meu metrocard e as casas americanas pela janela do metrô vão compondo minha vista durante o trajeto até a estação. A voz mecânica anuncia que eu havia chegado, começa a chover e, antes mesmo de procurar Bianca, eu saio da Grand Central na ansiedade de ver a cidade que até então era apenas miragem e paisagem de telas e, mais recentemente, janelas.

Avisto a ponta do Empire State Building, coberta por uma leve garoa, deixo a chuva molhar as lentes de correção dos meus óculos e passo quase três minutos parado no meio fio da calçada da 89st. Cheiro de fumaça, gordura de salsicha de cachorro quente e de cano de carros em sensação térmica fria que entra pelo nariz. O telefone toca, Bianca diz que está no relógio da Grand Central e preciso encontrá-los. Paro uma senhora com um “excuse me” trêmulo e pergunto pelo relógio de quatro faces. 

Corro por uma das diversas entradas da maior estação de Nova York que aparece na história do criminoso Al Capone, no filme “Os Intocáveis” de 1987. De longe, encontro o casal cratense. Após um grande abraço em cada um, finalmente conheço o rosto de Bianca que havia passado quase duas horas no telefone comigo semanas antes da viagem. Por um momento, é possível pensar que eles parecem irmãos de tão parecidos, mas não aprofundei a reflexão por querer apenas comer algo ou tomar uma cerveja.

Seguimos na direção noroeste pela 41st em direção a Lexington Ave, trecho em que curiosamente foi gravado a cena clássica que o vento do metrô levanta o vestido branco de Marilyn Monroe no filme “O Pecado Mora ao Lado” de 1955. Cruzamos o Bryant Park, passamos de frente a Biblioteca Pública de Nova York e viramos à direta em direção a Broadway. O nosso primeiro passeio foi na Times Square que terminou com uma vaia cearense de frente aos telões de publicidade.

Embora eu tivesse passado dez dias com Bianca e Thiago, não sabia ao certo o que fez o casal largar tudo em Crato para viver nos Estados Unidos. Também me surpreendi por nunca os ter visto na cidade do interior e apenas na capital americana. A ideia de sair da terra cearense para Nova York, explica Thiago, vem da “sede de desbravar o mundo, ver que existe algo além da Chapada do Araripe”, diz. O desejo de viajar se intensifica após o primeiro encontro do casal, quando eles percebem que desde muito jovens possuem o sonho em comum.

Bianca tem 27 anos, nasceu no Crato, é assistente social e gosta de economia, tem 14 gatos no Brasil e não come waffles. Thiago tem 29 anos, nasceu em Nova Olinda, é baterista, gosta de geleia de morango com waffles, como eu, e quando falou com sotaque me senti em casa. Ambos cresceram no bairro Vila Alta. “Viemos para perceber o que a cidade e a música tinham para nos oferecer”, conta Thiago. Juntos há 12 anos, o principal desafio da viagem foi o financeiro pelas economias e o desapego pelas vivências. Quando perguntado sobre o que havia deixado no Crato, Thiago deixa escapar na ordem da fala o amor pelos animais para depois falar da vida. “Deixamos a gata e toda uma vida para vir para cá”.

O casal chegou em Nova York em um final de setembro, no ano de 2018, era início de outono e as folhas começavam a secar nos galhos. “Bicho, sinceramente, nunca vamos esquecer das portas do aeroporto abrindo”, relembra. Thiago lembra que nas primeiras horas após desembarcar na cidade, Bianca olhou para ele e disse: “amor, estamos mesmo aqui?”. A sensação de viver em filme perdura até hoje, ainda que aos poucos a rotina se torne realidade.

Então, por que Nova York? Para Thiago a resposta é simples. Os músicos tocam jazz nos corredores subterrâneos do metrô e na 5th Avenue do Bronx. Da ponte do Brooklyn, a galera do reggae faz da língua universal a música ao invés do inglês. Baterista nos grupos Dom Rasta e Banda Nazirê, o músico tocava desde 2006 na cena autoral do Cariri. Ele conta que aprendeu a tocar por acidente. “Sempre tive vontade e costumo dizer que nadei contra a corrente. Há 13 anos, era bem difícil o acesso aos instrumentos musicais, eu era doido para ter uma bateria e as condições financeiras não permitiam”, fala Thiago.

Através de um presente da sua avó, um violão, ele pegou gosto pela música. Com algumas economias, comprou sua primeira bateria e tocou a vida. O primeiro contato com o instrumento aconteceu na Fundação Casa Grande, em Nova Olinda, quando o fotógrafo Helinho que tocava bateria, olhou para ele e disse: “Tu toca?”. Thiago sentou no banco e pegou nas baquetas, foi ali que percebeu: “quero isso para mim”. Hoje, o músico toca em vários lugares, tanto em bares brasileiros como americanos.

Muita coisa mudou de setembro a setembro, até no modo de sentir saudade. “Antes algumas coisas passavam imperceptíveis na vida da gente, como o cheiro do dia amanhecendo do Crato”, ele recorda. O inglês passa a escorregar melhor pela língua e a culinária passa a ser apreciada para além dos cachorros quentes e donuts com muito açúcar. Bianca cozinha bolo de cenoura com chocolate e feijão com pequi. Thiago aprendeu a tomar mais café e a não mais olhar para o relógio no cotidiano, devido a correria.

“Aqui eu toco, me divirto, mas eu sinto falta do reggae”, confessa. O casal, quase que simultaneamente, explica que é ruim dizer como é sentir falta da região do Cariri. Aos poucos, nos finais de semana, Bianca e Thiago vão descobrindo Nova York, sem pressa e com ritmo. Um dos lugares preferidos deles é o restaurante Carmine’s, lugar em que Frank Sinatra costuma comer. Thiago garante que o ravióli de lá é espetacular, mas não supera o arrumadinho cratense do Velho do Caldo.

Para saciar a saudade, Bianca escuta músicas que lembram sua mãe. Assiste novelas, filmes e programas para se sentir em casa, ao lado das tias. Mas, para ela, tudo ainda é muito recente, viver Nova York de perto ainda é um sonho, apesar da surpresa de cada encontro na cidade. “Não me parece que tem um ano que eu estou aqui, parece que tem menos, porque as lembranças que eu tenho ainda são muito fortes”, conta. Ela ainda pensa em ter filhos, mas acredita que o mais importante para isso é o contato com a família no Crato. Enquanto isso, gerar uma vida se torna assunto para depois, principalmente, quando ela ainda parece ter muito para descobrir e viver profissionalmente.

Ir para o Brooklyn assistir show de reggae no Brooklyn Ball, andar pelo Central Park, segurando as mãos um do outro, igual Yoko Ono e John Lennon no clipe de “Woman”, gravado no dia 26 novembro de 1980, e bater ponto do Guitar Center compõem os trajetos dos cratenses pela capital americana. “É impressionante conviver com músicos americanos e ver que música brasileira não se resume mais a bossa nova”, enfatiza Thiago. No último dia 27 de julho, Bianca e Thiago assistiram um show de Alceu Valença e Cordel do Fogo Encantado no Central Park. “Música brasileira nordestina, não é novidade mais em lugar nenhum do mundo. Estava lotado de americano e japonês, tocando xote e um japa dançando”, lembra o baterista que gravou o disco “A Vitória vai Chegar” da Nazirê, lançado em 2018.

Thiago pensa mais em voltar do que Bianca. Mas, eles querem mais tempo para pensarem a vida. Califórnia, Flórida e Washington ainda estão no roteiro de viagens do casal. Ainda que a saudade aperte, a vontade de mundo é maior. Na dispensa da casa deles não falta rapadura, goma de tapioca e flocos de milho para fazer cuscuz. Na geladeira, geleia de morango, mas o cheiro na cozinha Thiago, quando uma cuscuzeira está no fogo, não deixa ele mentir quando diz sentir saudade do Crato.